Segue abaixo a entrevista, retirada do site Nova Escola.
14 de maio de 2011
Por Márcio Ferrari
Emilia Ferreiro: ''O momento atual é interessante
porque põe a escola em crise''
Segundo Emilia Ferreiro, as mudanças tecnológicas e
sociais trouxeram maiores exigências ao trabalho de alfabetização
Leia abaixo a entrevista concedida
pela psicolinguista argentina Emilia Ferreiro a NOVA ESCOLA em outubro de 2006.
Emilia esteve em São Paulo para participar da 1ª Semana Victor Civita de
Educação. Aqui ela avalia as mudanças ocorridas nas práticas de leitura e
escrita nas últimas décadas, como consequência sobretudo das inovações
tecnológicas no campo da informática.
Como se alteraram as concepções de
alfabetização nestes quase 30 anos desde que foi publicado seu livro
Psicogênese da Língua Escrita?
Emilia
Ferreiro: Mudou a concepção social do
alfabetizado. O que se requer de uma pessoa alfabetizada hoje em dia é bem diferente
do que em meados do século 20. Não é mais suficiente saber assinar o nome e
conseguir ler instruções simples, como era na época da Segunda Guerra Mundial.
Do ponto de vista dos usos sociais da escrita no mundo contemporâneo, temos uma
complexidade cada vez maior. As circunstâncias de uso de leitura se tornaram
muito frequentes e variadas. O que não mudou é o tipo de esforço cognitivo
exigido por esse sistema de marcas que a sociedade apresenta em espaços muito
variados e a instituição escolar é obrigada a transmitir. O problema da relação
entre essas marcas escritas e a língua oral continua sendo um mistério total
nos primeiros momentos da alfabetização.
E quanto ao ensino?
Emilia Ferreiro: Uma mudança positiva é que já não se consideram as produções das
crianças de 4 ou 5 anos como tentativas erradas ou rabiscos, a exemplo do que
se dizia antigamente, mas sim como uma espécie de escrita. Parece-me que agora
há uma atitude positiva, como sempre houve em relação aos primeiros desenhos.
Outro avanço tem a ver com não se assustar quando crianças pequenas querem
escrever. Antes elas eram desestimuladas porque se achava que não "estavam
na idade". Também se reconhece a importância de ler em voz alta para elas
desde muito cedo. Já se sabe que existe uma diferença grande entre ler e contar
uma história. Há um pequeno avanço - não tanto quanto deveria haver - na
prática de ler textos distintos e na valorização da biblioteca de sala de aula.
A simples atividade de ordenar os livros com as crianças, usando critérios
múltiplos, já as aproxima muito da leitura e enriquece a escrita.
As coisas estão
melhorando, então?
Emilia
Ferreiro: Evidentemente estou dando uma visão
muito positiva. Sei que há um grande número de professores tradicionais que não
mudaram nada e continuam usando cartilhas dos anos 1920 e 1930. A instituição
escolar é muito conservadora, muda com dificuldade. O importante é ter
consciência de que ela não está definida para sempre. O que ocorre fora a afeta
e ela não pode fechar os olhos. Este é um momento interessante pelo avanço
tecnológico, que põe a escola um pouco em crise. Existem coisas que poderiam
ter constituído avanço, porém foram muito mal compreendidas, como acreditar que
os níveis de conceitualização da leitura pela criança mudam por si mesmas e que
não é preciso ensinar, apenas deixar que ela construa seu conhecimento
sozinha.
As novas
tecnologias trouxeram mudanças importantes?
Emilia Ferreiro: Sim, se aceitarmos que o conceito de alfabetização não é fixo, mas
uma construção histórica que muda conforme se alteram as exigências sociais e
as tecnologias de produção de texto. Os novos meios entram não somente na vida
profissional, mas no cotidiano pessoal. Permitem ler e produzir textos e também
fazê-los circular de maneira absolutamente inédita. No ano passado a Western
Union, empresa que tinha o monopólio dos telegramas nos Estados Unidos,
anunciou em sua página da internet que estava extinguindo esse serviço. Os
telegramas tiveram muita importância no século 20, anunciando contratações,
demissões, nascimentos e mortes - agora simplesmente não existem mais. Vemos
então a desaparição de certos gêneros e a aparição de outros. O texto de email,
por exemplo, não tem regras definidas. Não é como uma carta formal: podemos
dizer se ela está bem escrita ou não, porque há um paradigma claro para isso.
Quanto ao correio eletrônico, não. Algumas pessoas começam tradicionalmente,
escrevendo "querido fulano", dois pontos, e continuam abaixo. Como se
fosse uma carta formal. Muitos começam com "olá" ou mesmo sem nenhuma
introdução - vai-se diretamente para o texto da mensagem. Tampouco se sabe como
terminar. Alguns põem o nome; outros não, porque já está escrito no cabeçalho.
É uma espécie de escrita selvagem. Não está normatizada e se prolifera. É
difícil dizer se acabará constituindo um estilo.
O que significa,
então, estar alfabetizado hoje?
Emilia Ferreiro: É poder transitar com eficiência e sem temor numa intrincada trama
de práticas sociais ligadas à escrita. Ou seja, trata-se de produzir textos nos
suportes que a cultura define como adequados para as diferentes práticas,
interpretar textos de variados graus de dificuldade em virtude de propósitos
igualmente variados, buscar e obter diversos tipos de dados em papel ou tela e
também, não se pode esquecer, apreciar a beleza e a inteligência de um certo
modo de composição, de um certo ordenamento peculiar das palavras que encerra a
beleza da obra literária. Se algo parecido com isso é estar alfabetizado hoje
em dia, fica claro por que tem sido tão difícil. Não é uma tarefa para se
cumprir em um ano, mas ao longo da escolaridade. Quanto mais cedo começar,
melhor.
E possível dizer
quando termina?
Emilia
Ferreiro: Difícil... Eu tenho duas classes de
pós-graduação e continuo alfabetizando meus alunos, porque é a primeira vez que
enfrentam um certo tipo de texto que apenas a literatura especializada produz e
é difícil de ler. Além disso, eles têm de escrever um objeto denominado tese,
que também não é fácil de escrever, primeiro porque é algo que se produz apenas
uma ou duas vezes na vida e nunca mais; segundo porque é uma combinação de
texto descritivo e argumentativo, com características próprias. Ler fazendo uma
pesquisa na internet é um modo particular de ler, tirando informações e tomando
decisões rapidamente. Os tempos de utilização da internet podem ser
prolongados, mas o mais comum é que se faça um uso ágil. Não é o mesmo que
entrar numa biblioteca. A quantidade de erros de ortografia que se registram
nos emails é enorme. Isso porque a utilização é muito rápida e não costuma
exigir correção. Escreve-se e manda-se. Se for necessário dizer mais alguma
coisa, manda-se outro.
No Brasil, os
adolescentes criaram todo um código para se comunicar pela internet.
Emilia
Ferreiro: Isso acontece em toda parte; é um
fenômeno muito generalizado. Uma vez mais, não sabemos se é uma tendência
importante ou se passará sem deixar marcas. O certo é que eles estão fazendo
com a escrita um jogo muito divertido. É uma transgressão, mas para isso é preciso
conhecer alguma coisa da escrita. Porque afinal alguém tem que receber essa
mensagem e ler, ou seja, é preciso dar pistas para ser entendido. Um dado
curioso é que o uso generalizado da letra K nesse tipo de mensagem parece quase
obrigatório. Acontece também em espanhol, no qual o K é tão raro quanto em
português. E também é um recurso das crianças nas fases iniciais da
alfabetização. A letra K sempre tem o mesmo som, enquanto a letra C não é
confiável, tem muitos sons diferentes. Então as crianças ficam mais seguras
usando o K.
O e-mail incentiva
a prática da escrita?
Emilia Ferreiro: Acho que sim. Talvez não se leiam tantos livros atualmente, mas há
mais ocasiões de praticar a leitura e a escrita do que antes. Quando são feitas
pesquisas acerca do comportamento leitor de uma população, a pergunta
inevitável é: "Quantos livros leu no último ano?" Os resultados na
América Latina costumam ser lamentáveis, mas não se pode tirar imediatamente a
conclusão de que, no geral, se lê menos. Certamente a leitura de um livro e do
resultado de uma partida de futebol numa página da web não são equivalentes em
termos de esforço leitor; são práticas muito diferentes.
Isso pode levar a
um maior interesse pela leitura em geral, que acabe se refletindo na leitura de
livros?
Emilia Ferreiro: Talvez, mas seguramente não há uma relação de causa e efeito. Na
medida em que alguém pratica mais, torna-se mais competente e quem sabe possa
atrever-se a outros gêneros, suportes e obras frente aos quais antes tinha uma
atitude de rechaço ou temor. O que é importante distinguir é que sob o verbo
ler estamos agrupando muitos tipos de leitura e o mesmo vale para o verbo
escrever. Pelo lado de quem lê ou escreve, há diversidade de propósitos, de
circunstâncias, de tempo de organização. E pelo lado daquilo que se lê e se
escreve - ou seja, os gêneros - também há diversidade e deve-se incluir agora
os emails, os chats etc. Por isso é tão ambíguo o discurso sobre a introdução
das tecnologias no âmbito escolar. O professor não sabe bem o que fazer com
ele. Então inventou-se a sala de informática, freqüentada apenas em horários
determinados. É uma maneira de não incluir o computador na atividade cotidiana.
A introdução dos computadores na escola é mais uma manobra econômica do que uma
necessidade pedagógica sentida como tal.
Muitas escolas têm
computadores não conectados à internet. Costuma-se dizer que não servem para
nada.
Emilia
Ferreiro: Ao contrário, são muito úteis. A
escola sempre trabalhou mal a revisão de texto e os alunos sempre odiaram
fazê-la, porque num texto à mão as correções deixam um aspecto horrível. E é
preciso passar a limpo, voltar a escrever tudo. Com um processador de texto, a
revisão se torna um jogo: experimentamos suprimir trechos ou mudá-los de lugar,
com a possibilidade de desfazer se não ficar bom. Depois de muitíssimas
intervenções, o que temos na tela é um texto limpo, pronto para ser impresso. A
revisão é fundamental para que as crianças assumam a responsabilidade pela
correção e clareza do que escrevem. E com o processador de texto elas podem
trabalhar também com uma coisa que nunca trabalharam, o formato: largura das
linhas, mudanças tipográficas, sublinhamento, manipulação do tamanho das letras
etc.
Os computadores
podem ser mais um estímulo para a alfabetização?
Emilia Ferreiro: Nos lugares em que as crianças têm computadores em casa, o fato de haver
na escola não fascina muito, embora elas possam descobrir novos usos ao
trabalhar em grupos na sala de aula. Mas nas camadas mais desfavorecidas da
população os computadores possuem mais atrativos, porque todos sabem que é um
objeto muito valorizado socialmente e tem múltiplos usos possíveis. O problema
é que os computadores necessitam de suporte técnico e, quando são instalados na
escola, ninguém se lembra disso. Portanto, muitas vezes as máquinas estão lá,
só que inutilizadas.
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